"A inteligência do poeta precisa viver num mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites."

Eurico, o Presbítero
Alexandre Herculano

sábado, julho 31

[Escrito] Come Away Melinda

Ao fim de mais uma votação, uma pequena mudança: até agora, as escolhas foram todas por poemas. Dessa vez, trazemos um texto! Segundo a autora, este texto foi baseado em uma música de mesmo nome, da banda britâncica chamada Uriah Heep. Para quem se interessar, aqui está o link com a letra e a tradução: Come Away Melinda.html
Deixo aqui os parabéns à autora, que construiu toda uma cena entrelaçada com a música, mantendo o sentimento original.

Come Away Melinda


Autor: Deorís

Era uma tarde ensolarada. Nós estávamos nos preparando para a mudança desde muito cedo. Era estranho o sentimento que pairava no ar. Eu sabia que meu pai estava triste. Hoje eu sei porque, mas na época era complicado de entender. O meu pai não gostava de falar sobre e eu não sabia quais eram as perguntas certas a fazer. Era uma época difícil, a guerra estava explodindo nas ruas e a cada movimentação das tropas tínhamos que nos mudar. E isso era complicado para uma criança de dez anos entender. Afinal, para que fazer guerra? Para ser franca, até hoje não entendo. É irônico como tantas pessoas passam a vida inteira para entender coisas que crianças já nascem sabendo.

Colocamos todas as coisa que precisávamos no carro. Eu entrei no banco de traz e meu pai foi dirigindo. A algum tempo éramos só nós dois. Eu perguntava para o meu pai porque mamãe não ia junto, mas ele nunca respondia e sempre ficava daquele jeito. Com os olhos com lágrimas e calado. Então eu parei de perguntar. Apesar de sentir que tinha alguma coisa errada. Mamãe não ficaria tanto tempo longe da gente. Eu me lembrava cada vez menos da minha mãe. A cada dia que passava o rosto se cobria mais de neblina.


A estrada que meu pai estava era diferente de tudo que eu já havia visto. Parecia uma área rural. Mas ao mesmo tempo era familiar. Eu jurava que tinha visto algo parecido em alguma foto antiga da família. A sensação de lar aumentava a cada giro da roda do nosso carro. Apesar de simples a paisagem era linda, o campo verde para os animais se alimentavam, a cerca, as flores amarelas na beira da estrada, as árvores. Tudo parecia ter acabado de sair de uma pintura. E eu adorava tudo aquilo. Até o sol parecia brilhar mais.

Depois de um tempo, chegamos a uma fazenda. Era igual a todas as casas de fazenda da região. Era feita de madeira, com uma varanda enorme na frente. Uma cadeira de balanço perto da porta. Eu tinha a sensação de que alguém iria sair pela porta da frente e me oferecer um pedaço de bolo de chocolate. Mas ninguém saiu. Parecia que faltava alguma coisa na casa. Pensando um pouco achei que fosse o som. A casa vazia, não havia barulho algum, parecia morta. Completamente sem vida, sem alegria. Mas a sensação de que já havia sido diferente não saia da minha mente.

Meu pai me falou para ir brincar no quintal, enquanto ele retirava as caixas do carro. O sol já estava se pondo, então só poderíamos arrumar tudo amanha. Comecei a correr pelo jardim. Foi ai que vi o celeiro. Era parecido com o desenho que tinha em um livro que eu li a algum tempo. A minha imaginação de menina me chamava para brincar lá, conhecer um mundo novo. Estava um pouco escuro. Os raios de sol avermelhados do entardecer estavam passando pelas fendas das paredes de madeira do celeiro, fazendo desenhos no chão coberto de palha. Foi ali que eu achei uma caixa. Mas não era qualquer caixa. Ela continha uma história. E hoje eu sei que era a história da minha família, da tristeza do meu pai, das minhas perguntas sem respostas, das minhas sensações, e de tantas coisas que eu não tinha noção de como poderia ter sido. Hoje vejo que o pior que não ter algo, é você saber que poderia ter se algumas pessoas agissem diferente.

Corri para a casa grande, para chamar o meu pai.

“Papai, papai, venha ver!
Veja o que eu descobri!
Um pouco distante daqui”

Meu pai ficou com o olhar triste. Colocou a caixa que eu segurava no chão e se apoiou na mesa que estava ao seu lado. Ele parecia estar cansado, como se mil anos tivessem passados em um segundo. Bem diante de meus olhos. Ele estava triste, muito triste. Podia jurar que tinha visto lágrimas em seus olhos. Um suspiro brotou de seu peito e ele começou a dizer:

“Venha embora Melinda
Entre e feche a porta
Não é nada, só um álbum de fotografias (que)
Eles tinham antes da guerra”

Peguei um do álbum e me sentei no chão, perto do meu pai. Ele se sentou ao meu lado e começou a acariciar o meu cabelo ruivo que estava na altura do ombro. Abri o álbum e havia muitas fotos visivelmente antigas. As marcas do tempo mostrava as histórias que essas fotos revelaram para varias pessoas.

A alegria no rosto das pessoas era evidente. Eu podia sentir a alegria fluindo da foto para o meu lado. Meu pai ao meu lado estava sorrindo, como se essas imagens revelasse lembranças já esquecidas há algum tempo.

“Papai, papai, venha ver!
Papai venha ver!
Por que há quatro ou cinco garotinhas Melinda
Dentro do meu álbum de fotografias?”

Outro suspiro surgiu antes de sua resposta. A alegria em seu rosto não desapareceu de todo mas agora eu podia ver os olhos do meu pai no passado, vendo coisas que não estavam na foto.

“Havia um monte de garotas como você
Antes de terem a guerra”

Mudando de página, parecia que o tempo tinha passado, as pessoas estavam mais velhas. Mas era a mesma alegria, os mesmos sorrisos. Senti vontade de estar lá. De brincar. O plano de funda da foto parecia esta casa. É verdade que a casa era mais nova e mais conservada, mas sim era essa casa. As pessoas devem ter sido felizes aqui. No centro da imagem, havia um casal.

“Oh papai, papai, venha ver!
Depressa papai!
Por que há alguém em um vestido bonito
Ela é adulta como você
Você não vai me dizer por quê?”

Os olhos do meu pai se encheram de lágrimas outra vez. Ele esperou um estante e então respondeu.

“Esse alguém é a mamãe (que)
Você tinha antes da guerra”

Mas porque as pessoas fazem isso? Era por isso que a mamãe não estava junto da gente. Eu queria tanto os sorrisos, a alegria, as brincadeiras, a minha mãe.

“Papai, papai, diga-me se puder
Por que as coisas não podem ser
Do jeito que eram
Antes de a guerra começar?”

Ele começou a acariciar meu cabelo com mais doçura, hoje eu sei que havia tantas coisas que não foram ditas nesse gesto. Eu não tinha como “entender” naquela época. Mas mesmo assim meu pai confortou meu coração, e disse uma coisa que guardo até hoje junto a mim.

“A resposta está no ontem
Antes de terem a guerra”


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